Dr. Marcio Carvalho de Sá

lei do macho

Art. 977 do Código Civil (A Lei do Macho)

Antes de adentrar ao mérito deste artigo, não podemos esquecer que a maioria dos clientes do sistema de Holding Familiar, são pessoas que se casaram pelo regime de comunhão de bens, regime padrão para a década de 1970, regime que hoje conhecemos como comunhão universal de bens, ou seja, é o regime que os bens na constância do casamento são considerados comuns ao casal.

O artigo 977 do Código Civil dispõe que marido e mulher podem ser sócios desde que não sejam casados sob o regime de comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.

Cabe aqui trazer uma análise cronológica do nosso atual ordenamento cível. O Código Civil foi aprovado em 10 de janeiro de 2022 entrando em vigor no dia 11 de janeiro de 2003, o projeto de lei que começou a reforma do Código Civil de hoje foi o Projeto de Lei n.º 634/1975, projeto este que foi inaugurado antes da Lei do Divórcio que é datada de 1.977 (Lei n.º 6515/1977), em outro contexto constitucional.

Ou seja, a redação do nosso Código Civil é datada de 1975.

O texto do artigo 977 não é datado de 2002, mas sim de 1975, no mínimo. Apesar do Projeto de Lei ser de 1975 ele foi elaborado pela Comissão de Revisão e Elaboração do Código Civil criada em 1969.

Concluímos, então, que o texto aprovado no Código Civil de 2022 começou a ser elaborado no ano de 1969 por uma comissão coordenada pelo professor Miguel Reale. Tanto que, o artigo 977 não tem nenhum precedente no Código Civil de 1916.

Continuando na linha histórica, na primeira metade do século XX existiam litígios nos tribunais sobre a desconsideração da personalidade jurídica, que buscavam alcançar uma responsabilidade ilimitada de sócio casados, sob a argumentação que o ato que constituiu a sociedade é nulo por falta de autorização normativa para que essas pessoas possam ser sócias.

A jurisprudência do Superior Tribunal Federal, na época, dizia que a sociedade comercial entre marido e mulher era nula, sendo que caberia ao juiz declarar, quando comprovada, a nulidade. (RE 4687, Relator(a): JOSE LINHARES, julgado em 06/05/1941)

Cabe aqui destacar alguns trechos do acórdão, vejamos:

Não se contesta que marido e mulher foram casados pelo regime da comunhão universal de bens, antes, ao contrário, se afirma que tenham sido. Assim é que eles não podiam validamente contratar sociedade comercial, porque um contrato deste onde ofende o poder marital, instituição de ordem pública, e mais acarreta a violação da imutabilidade do regime de bens no casamento, princípio este fundamental.

No Código Civil de 1916 havia o artigo 230 que dizia que o regime de casamento não poderia ser alterado, ou seja, imutável.

O acórdão ainda prossegue dizendo:

Não há, pois, de cogitar de sociedade nestas condições; existe sim uma comunhão universal de bens, em que não distingue os do marido e os da mulher. Doutrina Houpins (Doutrinador Francês):

“”De acordo com a jurisprudência, uma sociedade não pode existir validamente entre dois cônjuges casados em regime de comunhão de bens, separação de bens ou qualquer outro regime, porque essa sociedade conferiria a cada um de seus membros uma igualdade de direitos incompatível com o exercício do poder marital, e modificaria as relações de interesse existentes entre eles, contrariando a regra da imutabilidade dos acordos matrimoniais.”

A primeira edição do livro de Charlies Houpins, jurista francês, data de 1881, repostando a jurisprudência francesa da época. Ou seja, a jurisprudência brasileira de 1941, arcaica, usa como fonte de direito uma doutrina francesa do século XIX. A própria jurisprudência francesa em 1941 já admitia a sociedade entre marido e mulher.

Inclusive, na França, em 1966, permitia-se ao marido e à esposa celebrarem uma sociedade entre si, com algumas restrições de responsabilidade.

No Brasil, em 1975, é criado o projeto de lei que cria, com restrição, a comunhão universal. 

Seguindo na história em 1982 a França acaba com as restrições, admitindo a sociedade entre marido e mulher.

Em 2002 o Brasil aprova o Código Civil atual que restringe a sociedade entre as pessoas casadas em comunhão universal de bens e em separação obrigatório, um posicionamento arcaico e machista, supostamente com base em doutrinas do século XIX.

José Carvalho de Mendonça, jurista brasileiro do final do século XIX, entendia que não era lícito contratar sociedade comercial, entre marido e mulher, por ofender antes de tudo o instituto do poder marital, sendo incompatível com direitos do chefe da casa. 

Ele continuava dizendo, ainda, que quando o casamento é sob o regime da comunhão de bens, a sociedade não é vantajosa seja em relação aos cônjuges, seja em relação aos credores, tendo em vista que os lucros do negócios era comum a marido e mulher e em relação aos credores não havia aumento de garantias. 

A tese de José Carvalho de Mendonça continuava defendendo que, quando o matrimônio obedecia a outro regime, a sociedade fraudava a lei que regulamenta os pactos antenupciais, tornando comuns, em virtude do contrato, bens que eram pactuados como separados, ofendendo a essência e irrevogabilidade dos pactos antenupciais.   

A doutrina velha tinha os seguintes argumentos para impedir que os cônjuges contraírem sociedade:

  • regime de bens no casamento irrevogável;
  • princípio do poder marital;
  • possibilidade de burlar o regime de bens.

Em 1962, no Brasil, tivemos um marco histórico na luta feminista, que foi a criação do estatuto da mulher casada, Lei n.º 4121/62. A mulher deixou de ser relativamente incapaz, abolindo o poder marital.

Em 2002, também, no ordenamento brasileiro, temos outro marco histórico quando o novo Código Civil retira a imutabilidade do regime do casamento, previsto no artigo 230 do Código Civil de 1916, e permite a alteração do regime de casamento através do artigo 1.639, §2º do Código Civil de 2002. 

Nesse sentido o Ilustríssimo o Professor Rubens Requião defende que desde que não fosse constatado o abuso da personalidade jurídica da sociedade, sendo que o juiz pode desconsiderá-la, como em qualquer outro caso, não há mais motivos para recriminar este tipo de sociedade. 

Inclusive, tal tese vem em consonância com a  nova jurisprudência, que  também dizia que a sociedade por quotas, entre cônjuges, como sócios exclusivos, é legítima, tendo em vista disposição legal que a proíba, mesmo comunheiros, sendo desconstituída apenas pelos defeitos invalidades da sua formação. (STF RE 104.597-PR, 1985). 

Em 1988 veio a atual constituição, dizendo em seu artigo 5º, inciso XVII que a liberdade de associação é plena, desde que seja para fins lícitos e que não seja com caráter paramilitar.

Já o  artigo 977 do nosso atual Código Civil é inserido sobre uma ótica, ainda, arcaica e machista, consagrando o machismo estrutural da sociedade, não acompanhando o posicionamento da nova doutrina e muito menos da constituição de 1988.

O DREI já entendeu que o artigo 977 do Código Civil não se aplica para S/A, pois este entende que a S/A não é contrato é estatuto social, tendo esta sociedade, por natureza, o intuitu pecúnia e não o intuitu personae.  

Tal argumento também deveria se estender para as sociedades limitadas. A IN-81 do DREI, Anexo IV, Capítulo II, Seção I, manual de registro de sociedade limitada, no qual diz que a pessoa impedida por norma constitucional ou por lei especial não pode ser sócia de sociedade limitada. Inclusive citando como exemplos o caso de consortes casados em regime de comunhão universal de bens

Neste caso, a alternativa é estabelecer entre os cônjuges o condomínio de quotas para constituir a sociedade. Afinal, a lei permite o condomínio de quotas.

Um dos princípios do direito real brasileiro é que a propriedade é exclusiva, não podendo esse direito ser dividido entre duas pessoas, mas duas pessoas podem exercer o mesmo direito sobre uma coisa só, é isso que conhecemos como condomínio.

Cabe trazer aqui dois argumentos contrários ao condomínio de quotas para que tenhamos a oportunidade de dialogar:

  1. Condomínio é igual a sociedade, logo incabível seu emprego por ofender a lei;

Vejamos:

A Sociedade está conceituada no artigo 981 do Código Civil e ss, no livro II, Do Direito de Empresa. O condomínio está descrito no artigo 1.314 e ss, no Livro III, do Direito das Coisas. Ou seja, são coisas distintas .

O artigo 981 do Código Civil conceitua sociedade como pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica.

Na sociedade há a partilha de resultados no condomínio o resultado não é partilhado, ele é entregue ao condomínio.

      2. Condomínio é diferente de comunhão e onde há comunhão não há condomínio.

Aqui, destacamos o entendimento doutrinador Caio Mário que entende que, em regra, a propriedade de qualquer coisa pertence a uma só pessoa.

Pode-se dizer que a noção tradicional de propriedade está ligada à ideia de assenhoreamento de um bem, com exclusão de qualquer outro sujeito.

Mas em alguns casos a coisa pode pertencer a duas ou mais pessoas ao mesmo tempo. Tal situação é designada por indivisão, com propriedade, comunhão ou condomínio.  

Já Carlos Maximiliano disciplina que a comunhão, em seu sentido técnico e estrito, é quando toda vez a coisa pertence simultaneamente a um plural de pessoas, em virtude do direito real de comunhão de propriedade, servidão, usufruto ou utilização de habitação.

Diante disso, o conceito de condomínio, em geral, é a comunhão da propriedade. 

Carlos Roberto Gonçalves leciona que comunhão é mais abrangente que condomínio, mesmo que ambos os termos sejam usados, muitas vezes, como sinônimos.

Sendo que, a comunhão, além da propriedade em comum, é incluída, também, as relações jurídicas em que apareça uma pluralidade de indivíduos.

Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald a comunhão dentro do direito das coisas, pode ser dividida em comunhão da propriedade, conhecida como condomínio ou copropriedade; e a comunhão da posse, situação de fato conhecida da coposse. Tal direito pode pertencer a várias  pessoas ao mesmo tempo, quando se tem a comunhão.

Então, quando a comunhão recai sobre um direito de propriedade, é quando se dá o condomínio. Resumindo, o condomínio é gênero comunhão.

Vemos, então, os argumentos acima devidamente refutados, mas podemos ir além, não cabe interpretação extensiva para restrição de direitos, conforme disciplina o artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal.

Diante disso, o artigo 977 do Código Civil não pode abranger a constituição de condomínio de quotas entre os cônjuges casados sob o regime de comunhão universal de lei, tendo em vista que a lei não proíbe a constituição de condomínio de quotas por pessoas casadas sob esse regime de casamento. Até porque, no regime de casamento de comunhão universal de bens o condomínio já existe.

Concluímos que, o artigo 977 do Código Civil retrata o resquício do machismo estrutural ainda presente na sociedade brasileira, merecendo o repúdio de toda a comunidade jurídica.

Quanto ao combate ao machismo estrutural que o artigo 977 do Código Civil apresenta, podemos apresentar algumas sugestões:

Em Relação ao Estado:

  1. Justiça: declarar a inconstitucionalidade da norma;
  2. Juntas e DREI: afastem sua aplicabilidade, numa interpretação de conformidade constitucional. 

Para o operador do direito, profissionais de contabilidade ou de Holdings Familiares:

  • subterfúgio lícito: condomínio de quotas entre cônjuges.

Para todos aqueles que se deparam diante do art. 977 como uma barreira:

  • Não se calem!

Referências: 

Marcio Carvalho de Sá
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